quinta-feira, 27 de maio de 2010

Uma canoa frágil e um rio selvagem

Outro dia pensei que podia falar sobre fazer aniversário, fenômeno temporal de invenção humana. A razão é que, prestes a completar anos, fiz as pazes com o relógio e passei a manter com ele uma relação absolutamente inédita, de forma que nunca um aniversário será tão plenamente bem vindo.
Não me ocorre nada mais glorioso para um ser do que ver celebrada sua própria existência. Vou além: por sobre as velas acesas instaura-se uma conexão espiritual. O festajado expõe ao universo as mais impossíveis realizações materiais.
Não havia de ser diferente com meus aniversários. Mas o fato é que, nos últimos anos, a chegada da data festiva trazia, junto com os doces, um leve gosto amargo: um ano a mais era outro de menos. Não seria preciso qualquer outra explicação para ilustrar esse drama humano, mas deixe-me lançar mão da ampulheta. Toda a questão reside no fato de que a areia, depois de escorrida pelo gargalo, não costuma retornar ao seu lugar de origem, e não se sabe se entrará em cena uma mão para virar a ampulheta, a fim de que a areia continue a escorrer.
É verdade que esse leve gosto amargo nunca chegou perto de eliminar o prazer do bolo, mas estava lá, presente no último pedaço.
E então chegamos aos dias atuais, quando o tiquetaquear do relógio deixou de soar como um sarcasmo do destino nas noites escuras e silenciosas, e o passar do tempo chegou a ser, não seria demasiado afirmá-lo, chegou a ser saboroso. Para que o leitor possa entender como se instalou esse curioso fenômeno comigo, basta que eu relate a mais nova visão que se me afigurou na mente sobre minha trajetória terrena. Subitamente, vi minha trajetória terrena representada na cena de uma canoa frágil e um grande rio selvagem. Vi-me sentado na canoa, remando, atravessando o grande rio em direção à outra margem. E a canoa é frágil, e as ondas do rio selvagem vão golpeando a canoa, chacoalhando-a de todas as formas e ruindo-lhe a madeira. E vejo-me remando, perplexo com a impetuosidade do rio. Do outro lado, um gramado, onde almejo deitar ofegante. E olho para trás, vibrando com cada metro percorrido, torcendo para que a canoa resista. Eis toda a inversão que se deu comigo. Não é preciso nenhum detalhe mais. Vinte e cinco anos de chacoalhadas!

Nenhum comentário:

Postar um comentário