quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

domingo, 21 de novembro de 2010

Leveza

Há vezes em que os gatos andam tão de leve que mal tocam o chão. Desfilam com a sutileza que lhes permite andar sobre o orvalho da grama sem molharem as patas.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Por que não haveria de ser?

Talvez este texto não traga em si nada de novo. Talvez eu esteja repetindo coisas. Mas eu queria ainda falar sobre um instante muito raro e nobre e que eu acredito todos possamos experimentar. Perdoe-me se não consigo descrevê-lo a contento; eu sei, no entanto, que ele existe, da mesma forma como Deus existe.

É um instante de conexão com o todo, de ligação, de união. Não sei se isso ocorre através da mente, do coração ou do espírito, mas é possível sentir. Sentir-se uma parte essencial do todo e sentir que o todo se manifesta através de nós, como se fôssemos uma engrenagem. Não há espaço para qualquer entendimento, qualquer reflexão. De forma involuntária, pode-se sentir a existência expressando-se. E então, acreditem! Nós nos tornamos transparentes! É possível ver através de nossos corpos!

É possível sentir toda a energia do mundo irradiando da ponta dos nossos dedos, capaz de mover a maior das montanhas. Outro dia tive um sonho incrível. Sonhei que eu conseguia ficar suspenso no ar! Era tão lógico! Bastava que eu ficasse mentalizando, liberando energia. Conseguia deslizar para cá e para lá, apenas com a força do pensamento. Com um pouquinho de mentalização mais profunda, conseguia subir mais alto. E sentia, de uma forma absurdamente nítida, a sensação de ficar suspenso no espaço.

A pergunta natural que ocorre então é como chegamos até esse estado. Não sei dizer. Tenho impressão de que há algumas regras. Não estão escritas em lugar algum. Tem a ver com nossas ações, com a forma que tratamos tudo o que está a nossa volta. A forma como nos harmonizamos com o todo; a forma como nós jogamos. É isso! Como não havia percebido?! Não há qualquer regra prescrita. Nós é que criamos as regras para nosso próprio jogo. Escolhemos, muitas vezes sem saber, as regras que serão aplicadas a nós mesmos.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

De cabeça mole

A gente vive e morre e nem se conhece! Foi o que pensei em um dia desses em que se está com a cabeça mole. Considerei subitamente que eu podia estar no trem errado, indo para a direção contrária. Espiei-me do pé à cabeça e quase soltei uma gargalhada. Vi como numa projeção, todas as minhas andanças diárias e perguntei-me, engasgando as palavras com risos diante do ridículo, para que diabos eu fazia tudo aquilo.

Considerei que aquilo era a eterna espera, não tendo eu nascido para esperas. Não, eu não nascera para os jogos demorados, as estratégias extremamente elaboradas. Nem para as meias palavras, nem para os amores medidos. Era covardia. Podia ser. E que mal haveria em ser covarde? Considerei que antes fosse um covarde!

E o caminho dos covardes era a estrada. Durante muito tempo me pareceu que para a estrada iam os fortes; jamais me passara que era o caminho dos covardes. Sim, para que os tédios, as esperas, o amanhã, os dias gastos ao sol escaldante para que fossem pagos os dias à sombra? Estar na estrada significava fugir do tédio, não do aborrecimento, mas do tédio, que não é outra coisa senão espera. Uma espera por nada e sem qualquer sentido.

Considerei que um dia eu pegaria a estrada. E visualizei-me a caminhar pelo globo, vendo as coisas diferentes, a vida pulsando... e constatei que voltar seria complicado. Sim, de que adiantava cair na estrada se ao cabo tudo voltaria ao mesmo?! Considerei que a liberdade era o bem que maior me reluzia no horizonte. A chave que me libertaria da espera. Sim, era isso! Era largar-se na estrada para nunca mais voltar! Redenção! Nenhuma lembrança! Sem passado, sem qualquer condicionamento! Ah, deixar tudo para trás!  Largar-se no mundo! Para nunca mais voltar...

terça-feira, 21 de setembro de 2010

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

A ponta de um drama

Veio assim sem avisar e o assolou em poucos dias. Quando deu por si, já era tarde. Ao aparecer o primeiro sintoma da paixão, duvidou que fosse. Depois, considerou que, caso fosse, convinha sufocá-la logo, antes que a coisa ganhasse corpo. Seria um despropósito. Sim, urgia sufocar logo. E resoluto, pôs-se a empreender tal feito. Mas não havia mais que fazer. Quando apareceram os primeiros sinais é porque já se instalara o germe da paixão. E agora crescia a olhos vistos.

Percebia que se encontrava num estado de torpor, como se o efeito do vinho não tivesse desaparecido e o sangue que lhe fervera nas veias não voltara a ser o mesmo de antes. Ao ter consciência disso, estremeceu. Apaixonar-se? Ridículo! Ele lá tinha idade para se apaixonar? Velho, depois de tanto tempo, tanta estrada, sentimentos outros... Sentiu-se um adolescente ingênuo. Sim, afinal tudo não passava de uma adoração ingênua. A própria imagem que não lhe saía da cabeça, de umas pernas harmoniosas cobertas com meias escuras, ele a via como um fim em si. E detinha-se a namorar eternamente essa imagem, preso a ela como um cristão fiel prende-se à cruz.

Num surto de sobriedade, agitou a cabeça a fim de expulsar, ao menos momentaneamente, a imagem, e foi dali a outras paragens. Respirou outros ares, jogou algumas palavras fora, espiou outras pernas, sem meias escuras. Houve um instante que julgou estar no caminho da libertação, mas ao cabo a experiência em vez de o curar o pôs mais doente ainda, com o agravante que lhe confundiu completamente o quadro.

Agora anda por aí desencontrado, o olhar mole e perdido... sai para caminhar ao anoitecer, aspira o ar carregado do perfume das flores, que é mais nítido ao cair da noite... por vezes, olha para o céu, como se esperasse por uma resposta a alguma pergunta que nem mesmo conhece... e continua andando, arrastado pelo vento. Assim vai, até encontrar um obstáculo que o derrube ao chão ou até que acabe a força que lhe deu movimento. Assim vai, como um pneu solto posto a rodar no asfalto. Vai rodando, rodando...

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Enfim, o tal aprendizado...

Eu quisera falar sobre aprendizado quando falei sobre a dor e a arte, mas cogitei depois que podia ficar complexo demais; a coisa podia se perder... resolvi, então, fazê-lo em ocasião própria. Pois bem, aí vai. Inicialmente, há que ficar claro que o que segue não são verdades absolutas; nem o propósito aqui é adotar qualquer estilo dogmático. Trata-se de percepções, e a ressalva é válida, afinal não se sabe até que ponto os sentidos...

Como dizia, eu queria ter falado do aprendizado quando falei da dor porque esses elementos, por vezes, caminham juntos. Toda dor carrega em si um aprendizado. Isso porque a dor resulta da falta de algum conhecimento necessário e só vamos dar pela falta do mesmo quando a cabeça já deu contra o muro. Daí temos como resultado a testa rachada e o tal aprendizado... Não digo que a dor seja a única forma de se aprender, mas talvez seja a mais eficaz.

A fim de evitar a dor, torna-se atraente a ideia de ter todo o conhecimento de antemão. Eu mesmo tenho pedido ao mestre: ensina-me, de uma vez, tudo, tudo, tudo! Mas a coisa não se desenha por aí. Não há fugir de alguns tropeços. Eles são necessários. Isso me faz lembrar de um conto curioso de Machado de Assis, chamado A segunda vida.

A cena do conto se desenrola na casa de um padre, que recebe um sujeito desconhecido, e que, ao ouvi-lo por um instante, cuida se tratar de um lunático. Conta o sujeito que morrera alguns anos ou décadas antes e que, ao expirar, viajara no espaço até muito além do sol e estrelas, onde foi recebido com celebração universal. A celebração se devia ao fato de ele completar um milheiro de almas que chegavam àquele lugar. Nesse caso, como era de regra, tinha ele a oportunidade de retornar a Terra. Não havia negar, mas podia escolher a condição. Disse então que não se importava se, na nova vida, fosse rico ou pobre, preto ou branco, contanto que fosse experiente. E assim se fez. Renasceu com toda a experiência da outra vida. E foi a pior escolha que podia ter feito! Teve uma infância aborrecida. Chorava o menos que podia, para não apanhar; não subia em árvores, nem trocava muros com outros moleques, coisas naturais da idade, por prever o sangue e a contusão. Mais tarde, quando pintava uma paixão e a ideia do casamento, hesitou antes mesmo de viver aquilo. E se com os anos de casamento viesse o fastio? E se viesse algum filho aleijado? Anos depois, em frente ao padre, ele concluiria, num assomo de histeria, que entre as cabeças quebradas da primeira vida e o tédio da segunda, antes as cabeças quebradas!

Definitivamente, alguns tropeços são necessários. Há de se cuidar, no entanto, em ir devagar, às apalpadelas, a fim de evitar alguma pancada forte. E, sendo pragmático e compartilhando, meu leitor, abro minha mala e retiro, por entre a poeira, o que ficou depois de algumas escorregadas pela vida afora. Segue abaixo.

Em primeiro lugar, o futuro. Temos para o futuro projeções e tendências, mas é prudente ter consciência que não se pode prever como vamos pensar ou agir. Nós somos personagens, tal qual em uma novela, onde o dramaturgo ainda não sabe como será o final da estória e vai brincando com os elementos ao leve sabor da experimentação. Assim, é preciso tomar cuidado com o uso do vocábulo nunca. Em segundo lugar, é sensato não ter a ilusão de que podemos controlar o mundo. Mal podemos controlar a própria mente e os sentimentos, que diabos achamos que podemos controlar? Por fim, é benéfico cultivar sentimentos como humildade e gratidão. Humildade porque não se é tão forte quanto se acredita, e existe sempre por trás do escudo uma fraqueza, mesmo que não seja conhecida. Em relação à gratidão, se a temos, a vida se torna mais leve, a cabeça fica em paz com Deus e os homens e as novas conquistas trazem sempre um sabor especial.

Olha, meu leitor, se essa filosofia barata te prestar alguma contribuição, é coisa que me deixaria honrado! Afora isso, penso que fiz bem ter escrito. Isso porque antes de escrever para você, eu escrevo para mim mesmo. Colocar as coisas no papel é uma forma de consolidá-las e ajuda a memória. E o fim maior é evitar pancadas fortes.

sábado, 14 de agosto de 2010

Da dor e da arte

Aí estão dois elementos de natureza distinta, mas intimamente relacionados. O primeiro é sentimento; o segundo, expressão. Um é sentidos, o outro músculos.

Todo ser há de carregar sobre os ombros um pouco de dor. Uns carregam mais, outros menos, é verdade. Como já dizia Shakespeare, cada um sabe as dores e delícias de ser o que é. E uma pitada de tristeza não faz mal. Dizem os artistas, que embeleza o quadro, embora à primeira vista isto parece soar incompreensível.

Da dor, floresce a arte, que se apresenta como um canal de transcendência, por onde se entra em contato com o divino. Dor e arte convivem numa relação de simbiose. A arte suprime a dor, exatamente porque a primeira pressupõe a aceitação da segunda.  Pode-se dizer que se trata de um estado de consciência. É a partir daí que se quebra um vínculo, quando o ser, em sua transcendência, desincorpora.

E a arte, por sua vez, precisa da dor. Diz a música que pra se fazer um samba com beleza, é preciso um bocado de tristeza, senão não se faz um samba não.

Os verdadeiros artistas carregam tristeza em alta dose. Mas, por sua vez, eles possuem um tesouro raro: a arte! Dor e arte pintam, no quadro da vida, o inabalável equilibrio.

domingo, 1 de agosto de 2010

O amor que você nega é a dor que você carrega

Dias atrás recebi uma visita que me rendeu esta crônica. Trata-se de um moleque amigo meu, recém ingresso na universidade. Carrega toda a espalhafatice da idade, mas é um sujeito desperto e em alguns aspectos pode-se dizer que está adiantado a seu tempo.

Em poucos minutos de conversa, confessou-me ter descoberto a lei do universo, e de forma extremamente verossímil, me expôs, argumento sobre argumento, uma teoria originada a partir de estudos que ele vinha empreendendo há algum tempo e que não me atrevo a descrevê-la aqui por completo. Digo só que fiquei atônito, ouvindo cada detalhe daquela teoria que envolvia extraterrestres, linhagem e evolução humana, reis e governantes.

Advertiu-me, no entanto, e aqui está a razão de eu ser breve, que não ficasse espalhando por aí, que a coisa era secreta e reservada a um pequeno grupo; se eu fosse dar com a língua nos dentes e a coisa fosse cair nas mãos erradas...

Para fins didáticos, as leis e princípios têm nomes e o meu amigo não deixou de nomear a sua. Aqui entra o título da crônica. Sim, meu caro leitor. Isso mesmo! O meu amigo me dizia que a lei do universo não era a lei da física, como queriam alguns, e recitava, excitado com a descoberta, quase que palavra por palavra a máxima que resumia tudo: o amor que você nega é a dor que você carrega... Faça o uso que bem lhe aprouver, leitor. Quanto a mim, anotei-a com esmero e segue registrada aqui.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

quinta-feira, 15 de julho de 2010

terça-feira, 13 de julho de 2010

Acidente de percurso

Vejam senhores, o que é um acidente de percurso! A essa altura do campeonato, eu poderia estar casado com uma doce e prestativa companheira, um piá se me agarrando as pernas, uma casinha no campo, sem luxo mas confortável, e um Fiat 147 na garagem. À noite, depois de um dia de trabalho pesado, eu deitaria na cama e teria um sono regenerador. Levantaria ao raiar do sol para mais um novo dia, assim como manda a ordem natural.

Mas eis que uma borboleta resolve bater suas asas em algum bosque remoto e lá vou eu pra capital! Com algumas roupas e a pretensiosa missão de se fazer independente, galguei o chão da rua que iria me acolher com toda a sua festividade.

Aí foi só uma questão de tempo. Fiz-me cachorro de rua, magro e sem coleira, a postar-se em frente dos portões depois de descobrir a que horas ele se abriam. E por aí fiquei perambulando nas noites de garoa fria. No concreto da rua me foi dado ensinar a lei da selva.

Enfim, o tempo, que não sabe da curta existência dos humanos, correu com a indiferença que lhe é comum. E, com um pouco de maquiagem e roupas novas, inventei um disfarce.

Hoje, olhando o abismo que me separa do caminho que eu deixei pra trás com a mudança, fiquei curioso em saber se ele não seria mais vantajoso. Fiz a conta na ponta do lápis, mas não cheguei a resultado algum. Muitos diriam que com a mudança, considerando a minha situação hoje e o ponto de partida, eu estaria num nível bastante evoluído, e que a experiência teria me garantido algum conhecimento. Mas essa é uma visão simplista. Considerando todas as nuances do cálculo, o saldo é nulo. Mas mais nula ainda, e inútil, é qualquer apreciação sobre isso. Nessa estória toda não há melhor, nem pior. Trata-se apenas de um acidente de percurso.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Peripécias do acaso – De Salvador para Aracaju


O acaso brinca com as coincidências. De teoria, é só isso. Vamos aos acontecimentos
            Depois de uma viagem um tanto cansativa pela BR 101 chego de Salvador em Aracaju numa noite chuvosa de segunda-feira. Salvador não poderia ter sido melhor e deixo um pedaço do coração nas mãos de uma baiana.
Aracaju não é umas das cidades mais glamourosas do Nordeste e não tem albergue da juventude. Assim, escolhi uma pousada barata e muito bem caprichada no bairro Atalaia, que é o point da cidade.
            Depois do banho, o primeiro passo é comer alguma coisa. No lanche perto da pousada, já coleto todas as informações primordiais: caixa eletrônico do Banco do Brasil, informações de ônibus e táxi e outras coisas mais. Daí vou a uma lojinha de artesanato ao lado, onde tem uma bela garota. O objetivo é perguntar o que tem pra fazer à noite, mas uma boa forma de iniciar a conversa é perguntar sobre a caixinha mágica. É que um sujeito me encomendou uma dessas caixinhas mágicas, que são muito comuns em Aracaju. Mas isso é assunto pra outra ocasião.
            O fato é que adentrando no estabelecimento deparo com dois sujeitos branquelos pedindo a mesma informação que eu almejava. Aí me incluí na conversa. Duas palavras foram suficientes pra ver que eram do sul. E fomos perguntando sobre as origens. Com surpresa, vimos que éramos do mesmo estado; catarinenses. E mais, da mesma região! Pra ser mais específico, eram de Cocal do Sul, aproximadamente há dez quilômetros da minha cidade. Isso já é suficiente pra se considerar uma grande coincidência. Mas a coisa não termina por aí. A viagem deles era muito parecida da minha: como eu, vinham de Salvador e seguiam pro norte, com a diferença que eles planejavam terminar a viagem em Maceió e eu seguiria até Fortaleza.
            E conversa rolando, combinamos de sair juntos à noite. Descobrimos que estávamos na mesma pousada. A conversa de bar, regada a cervejinha, mostrou-me que eram sujeitos iluminados pela luz da consciência. E, claro, considerando meus conceitos e valores, era uma coisa muito incomum existir dois sujeitos iluminados provenientes de Cocal do Sul. Ainda mais numa noite chuvosa de segunda feira em Aracaju. Mas o fato é que eram muito viajados, e aí está a origem da iluminação. Haviam morado nos lugares mais remotos e diferentes do Brasil e em alguns lugares do exterior.
            É de se destacar que a bagagem do verdadeiro estradeiro não carrega o glamour do turismo. Um deles havia pintado o prédio de uma grande escola de música nos Estados Unidos. Ele não apenas conhecia a escola. Ele havia pintado ela!
            Enfim, não precisou muita conversa pra perceber que tínhamos em comum não apenas o conhecimento da língua portuguesa. Conseguíamos estabelecer comunicação plena! E a conversa seguiu animada e descontraída, enquanto relatávamos as experiências vividas em Salvador, em especial os assédios que um branquelo do sul enfrenta em Salvador da imensa gama de vendedores e “malandros”. Quanto aos assédios, creio que eles sofreram mais do que, afinal ficaram no Pelourinho, enquanto eu fiquei na Barra. Além disso, ambos de olhos azuis. Portar olhos azuis no Pelorinho pode ser perigoso! E a conversa seguiu animada!
            Da conversa, guardei mais uma pra bagagem. Na arte de se fazer insignificante, uma camisa de posto de combustível, pode ser muito eficaz, ainda mais se estiver um pouco rasgada e suja de graxa.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Uma canoa frágil e um rio selvagem

Outro dia pensei que podia falar sobre fazer aniversário, fenômeno temporal de invenção humana. A razão é que, prestes a completar anos, fiz as pazes com o relógio e passei a manter com ele uma relação absolutamente inédita, de forma que nunca um aniversário será tão plenamente bem vindo.
Não me ocorre nada mais glorioso para um ser do que ver celebrada sua própria existência. Vou além: por sobre as velas acesas instaura-se uma conexão espiritual. O festajado expõe ao universo as mais impossíveis realizações materiais.
Não havia de ser diferente com meus aniversários. Mas o fato é que, nos últimos anos, a chegada da data festiva trazia, junto com os doces, um leve gosto amargo: um ano a mais era outro de menos. Não seria preciso qualquer outra explicação para ilustrar esse drama humano, mas deixe-me lançar mão da ampulheta. Toda a questão reside no fato de que a areia, depois de escorrida pelo gargalo, não costuma retornar ao seu lugar de origem, e não se sabe se entrará em cena uma mão para virar a ampulheta, a fim de que a areia continue a escorrer.
É verdade que esse leve gosto amargo nunca chegou perto de eliminar o prazer do bolo, mas estava lá, presente no último pedaço.
E então chegamos aos dias atuais, quando o tiquetaquear do relógio deixou de soar como um sarcasmo do destino nas noites escuras e silenciosas, e o passar do tempo chegou a ser, não seria demasiado afirmá-lo, chegou a ser saboroso. Para que o leitor possa entender como se instalou esse curioso fenômeno comigo, basta que eu relate a mais nova visão que se me afigurou na mente sobre minha trajetória terrena. Subitamente, vi minha trajetória terrena representada na cena de uma canoa frágil e um grande rio selvagem. Vi-me sentado na canoa, remando, atravessando o grande rio em direção à outra margem. E a canoa é frágil, e as ondas do rio selvagem vão golpeando a canoa, chacoalhando-a de todas as formas e ruindo-lhe a madeira. E vejo-me remando, perplexo com a impetuosidade do rio. Do outro lado, um gramado, onde almejo deitar ofegante. E olho para trás, vibrando com cada metro percorrido, torcendo para que a canoa resista. Eis toda a inversão que se deu comigo. Não é preciso nenhum detalhe mais. Vinte e cinco anos de chacoalhadas!

terça-feira, 18 de maio de 2010

Talvez alguma coisa muito nova possa me acontecer

Parece que viajar expande a consciência. E viajar, aqui, não significa necessariamente sair do lugar de onde se está. Pra isso existe a arte e talvez outros departamentos mais. Outro dia, numa viagem às origens, num lugar remoto do Rio Grande do Sul, onde tudo é primitivo, achei-me num suposto estado avançado de consciência, enquanto olhava, cheirava e pisava à terra onde a Providência quis fossem fixadas algumas raízes minhas. E, então, mais uma vez, constatei abismado como aquele meu estado representava uma quebra na ordem natural. A natureza não precisa da consciência. A luta pela sobrevivência pode ter dado origem à ciência, mas a luz do auto-conhecimento parece ser a coisa mais sobrenatural no mundo da vida. E se o homem for responsável por essa luz, é a sua maior ousadia em relação à Criação. A consciência não cabe no mundo material. Quando o sujeito e o objeto se fundem num só, quando "se sai de dentro da própria cabeça", algo novo e inexplicável acontece. A verdade se materializa, pura, nua e crua. Não temos mais sujeito nem objeto, talvez o cosmos. E para que serve a consciência? A princípio, parece que não vai trazer a felicidade duradoura. Quando muito, um estado ilusório e passageiro do ego. É mais provável que traga a dor, ou outros estados parecidos, assim como parecem ser os estados de aprendizagem. Mas ela é tão bela, tão pura, e tão sublime! Pode ser que, ao fim, ela seja a luz pra mais árdua e grandiosa revolução!


Minha cabeça só pensa aquilo que ela aprendeu
Por isso mesmo, eu não confio nela eu sou mais eu
Sim... pra ser feliz e olhar as coisas como elas são
Sem permitir da gente uma falsa conclusão
Seguir somente a voz do seu coração

E então, e então

É preciso você tentar
Mas é preciso você tentar
Talvez alguma coisa muito nova possa lhe acontecer


Aquela coisa, Raul Seixas